quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O mendigo

    O que você daria para o título desta história, nada não é? Nem sequer uma esmola, estou certa? Você está sempre duro quando eles te pedem alguma coisa, certo? Bom, foi para um deles que dei a minha confiança, nela, a minha vida.
    Não me levem a mal, tenho certeza absoluta que vocês não estão lendo essa história para serem criticados. Mas, eu em nenhum momento critiquei vocês, podem me jogar um monte de “é, mas eu não vou ajudar essas pessoas que não correm atrás de um trabalho, de uma vida decente”, vocês, meus caros leitores estão certos, eu também não ajudaria, e também, em algum momento aqui, nestes dois parágrafos, você leu alguma coisa sobre isso? Creio que não. 
    Mas sejamos sinceros, o que eu disse exatamente foi que eu dei total confiança a um deles, o que não deixa de ser verdade, estou aqui para contar o que foi de fato a maior experiência da minha vida, ou vocês pensam que eu saio pelas ruas dando a minha confiança para qualquer pessoa que esteja passeando por elas?
    Não me julgue uma pessoa grossa, tenho certeza que pareço, estou certa? Mas, antes de tirar conclusões precipitadas sobre a história e tampouco sobre mim, quero que saiba que você poderá me considerar levemente misteriosa com uma pitada de grosseria, admito, no fundo eu sou assim, mas se confiarem em mim, farei dessa história uma das melhores que já leu, afinal, eu não acabei de falar que esta foi a maior experiência de minha vida? Da maneira que você me julga, como acha que esta história será? Boa ou ruim? Confie em mim, só isso, não tente achar nada, não tente adivinhar o fim, só siga os parágrafos e se quiser parar, pare.  A escolha é sua, eu confiei minha vida a um mendigo e você? Confia em mim?
    Meu nome é Samanta, Samanta Polydoro, me chame como quiser, se gostar verdadeiramente de minha história, até deixo você me chamar de Sam. Sou gerente de uma panificadora no subúrbio de Nova York, não, meu negócio nunca foi e duvido que será famoso, só se algum ator famoso de Hollywood aparecer na tevê e falar “eu adorei os pães da Sam’s” aí sim, nossa, tenho certeza que eu não sou a única que sonha sonhos impossíveis, quer dizer, não são impossíveis, mas me fale a numeração deste acontecimento virar realidade, aí sim eu poderei de uma vez por todas perder as minhas esperanças.
    Meu negócio fecha sempre, exatamente, as nove horas da noite. E sempre, exatamente, cinco minutos antes de fecharmos aparecia por lá um menino, mas falemos a língua que todos compreendem, era um sujo menino de rua, um mini mendigo, afinal ele não tinha casa e até onde meus olhos viam, ele também não tinha família e sabia muito bem como pedir esmola. Como eu sei disso? O que você acha que ele ia fazer lá sempre, exatamente, cinco minutos antes de fecharmos?
    Ele chegava e perguntava sempre a mesma coisa:
- Você poderia me dar um pão?
    Agora, me digam vocês, vocês que já me julgaram tão facilmente no começo da história, o que acha que eu sempre, exatamente, cinco minutos antes de fecharmos respondia? Não? Acertou mais uma vez.
    Mas, eu tenho outra pergunta para você, meu caro leitor, se um mendiguinho batesse na sua porta no mesmo horário todos os dias, o que você faria? Você até poderia ajudá-lo no começo, mas e depois que ele se acostumar, como vai mandá-lo embora? Vai avisá-lo que já volta com o seu pãozinho e não voltará mais?  O deixará esperando um bom tempo lá fora com a porta fechada em sua cara, até ele perceber que você foi um grande mentiroso? Bom, eu penso nisso antes de tomar tais decisões.
    - Não. Só se pagar.
    Ele não respondia, ele nunca respondeu, ele simplesmente se virava e saia porta afora, só não me pergunte aonde ele ia, afinal, de Nova York eu só conheço cinco lugares, o meu apartamento de solteiro, a minha panificadora, a Times Square, a Estátua da Liberdade e o Central Park, mais? É demais para mim. E olha que eu posso tirar três itens da minha lista facilmente, já que nem me lembro quando foi a última vez que fui lá.
    Certa noite, novamente no mesmo horário, o menino entra mais uma vez pela porta e faz a sua pergunta de costume:
- Você poderia me dar um pão?
    O que fazia de mim, naquele momento, diferente das outras noites em que ele me perguntou exatamente a mesma coisa? Nada. Não mudo de uma noite para outra.
- Não. Só se pagar.
    Ele novamente não disse nada e se retirou, não entendia aquilo, principalmente por ser criança era digno de ele pedir mais alguma coisa ou continuar insistindo, a famosa teimosia de uma criança, que venhamos e convenhamos, não são só características de crianças, estou certa?
    Mas, por incrível que pareça, mais pelo meu modo de vida totalmente pacato, alguma coisa mudou naquela noite e seguiu diferente por exatamente uma semana. O menino não voltara na noite seguinte, e como você meu caro leitor que adora tentar adivinhar o fim das histórias e julgar seus personagens, já deve ter notado, por uma semana ele se ausentou.
    Onde ele estava? Ah, pergunte pra ele meu caro, não sou uma narradora onisciente.
    Mesmo já tendo chance, nunca perguntei isso a ele, não queria que ele achasse que eu percebi sua ausência, as vezes era isso mesmo que ele queria que eu fizesse, “ah, por favor, Samanta, ele é só uma criança acha mesmo que tem cabeça para pensar nessas coisas?” Ele tem cabeça meu caro, assim como todos nós, e sabe pensar, assim como todos nós, acha mesmo que ele não seria capaz? Tem razão, ele é só uma criança, mas o que não faria dele uma nova criança prodígio? O fato dele não ter uma casa? Bom, já chegaremos ai.
    Uma semana se passou, devo dizer que esta foi a semana mais calma e tranqüila e ao mesmo tempo foi a mais inquietante, eu queria mesmo saber onde andava o mini mendigo.
    Segunda feira, exatamente cinco minutos antes de fecharmos, eu escuto o barulho da porta, ele voltara, devo dizer que desta vez eu pensei seriamente em dar-lhe um pão, mas, voltemos a mesma pergunta, o que fazia de mim diferente das outras noites em que ele me perguntou exatamente a mesma coisa? Pra ele nada. Eu não estava diferente, mas aliviada, por quê? Bom, tirando o fato que eu acabara de conseguir de volta o mendigo que me atormenta todas as noites pedindo um pão já sabendo que o seu pedido será negado, o que mais seria?
    “Que mulher estranha!” tenho certeza que isso passa pelo pensamento de vocês, e então, voltamos a fase dos julgamentos? Suspiro, eu já esperava isso. Mas, não farei com que vocês retirem o que pensam de mim, eu sei o que sou, vocês acham que sabem.
    Neguei-lhe novamente o pão e ele novamente se retirou. “Mas, só vai ficar nisso?” Por favor meu caro, você acha mesmo que a rotulada maior experiência da minha vida só ficará nisso? Se você acha que sim, imagino como seria a maior experiência da sua vida.
    Quando saio da panificadora, descendo a rua que dava direto em meu sutil prédio, ouvi o frear de carros, incrivelmente alto, e logicamente, passado o susto, me virei para ver o que havia acontecido, mas, que carro?  Não é possível que seja coisa da minha cabeça, mas eu ouvi o carro. Mas na rua, bem no meio dela, o que me parecia de longe, havia um cachorro deitado.
    “Era mesmo um cachorro?”, Não!
    O carro simplesmente sumira, e daí que ele havia atropelado alguma coisa?
     Tenho pena de quem pensa assim...
    Aproximei-me do que eu achava ser um cachorro, mas ali estava, deitado totalmente encolhido, o menino, o mesmo que sempre aparecia na panificadora, exatamente, cinco minutos antes de fecharmos.
    Eu por um momento fiquei em duvida se o ajudaria ou não. “Como assim dúvida?” eu sei meu caro, mas pense comigo, e se eu o ajudasse? Eu o levaria para o hospital mais próximo, ele seria atendido com agilidade, pelo estado dele, mas e depois? Depois de curado, pra onde ele iria? Voltar para as ruas e correr o risco de ser atropelado novamente? Se eu fosse ele, não sei o que preferiria.
    Mas, indo pelo êxtase do momento, logo esqueci as minhas perguntas e o peguei no colo, ele era incrivelmente leve e magro, imagino o que um pãozinho por noite poderia ter ajudado. Levei-o para o meu apartamento, de lá, chamei uma ambulância.
    Com as coisas se acalmando, pude perceber que ele estava totalmente arranhado nos braços e nas pernas, não consegui verificar onde havia sido a batida em si, acho que a roda do veículo não chegou a passar por cima dele, alívio.
    A ambulância chegou e o acompanhei até o hospital, ele seria tratado com a agilidade que precisava, mesmo que, pelo menos aos meus olhos, ele não estava assim tão ferido, mas logo depois constataram que ele estava com três costelas quebradas.
    Fiquei um pouco assustada com a notícia, mas e se eu continuasse a vê-lo no hospital? Ele iria se acostumar com a companhia e iria achar que depois eu poderia dar pãezinhos para ele quando ele bem quiser? Eu até poderia pensar em dar um ou dois, mas mesmo assim, não era isso o que mais me preocupava, ele estava aqui no hospital, tendo um bom atendimento, mas e quando ele sair? Eu seria capaz de deixá-lo voltar as ruas? Sim eu era. O máximo que fiz por ele enquanto estava no hospital foi levar dois pãezinhos, realizar dois pedidos negados, e só, depois fui para casa e voltei a minha vida monótona na panificadora.
    Alguns dias se passaram e então, cinco minutos antes de fecharmos, a porta se abre, e o menino entra, queria saber se ele estava verdadeiramente bem, queria saber onde estava, como estava, mas de princípio, a única coisa que me veio a mente foi “ah, não, ele vai querer outro pão e não vai mais sair do meu pé”.
    Ele se aproximou e disse:
- Obrigado.
    Eu já estava com o meu não engatado, ele havia me pegado de surpresa, mas mesmo assim, achei conveniente responder.
- Por nada.
    Ele então se retirou, sem pedir nada, sem querer nenhum pão. Ele não gostou do meu pão? Por que ele não me pediu um como de costume?
- Não vai pedir nada hoje?
    Ele se virou novamente e me olhou, analisando.
- E se eu pedisse moça? O que você faria?
    O que eu faria? Eu diria não, claro. Mas, até onde ele queria chegar com isso?
- Eu lhe negaria.
    O olhar dele me pareceu triste, mesmo que ele sempre tivesse um ar triste, mas acho que no fundo ele tinha esperanças. No fundo ele era só uma criança.
- Então porque você acha que eu deveria pedir?
    Certo, ele tem um motivo para sempre me pedir pão e sempre ser negado, mas porque hoje ele mudou de idéia, então o motivo pelo qual ele deveria pedir, não sou eu quem deveria saber. Certo?
- Pelo mesmo motivo que você sempre vem aqui todas as noites pedir sempre um pão.
    Ele me olhou novamente, com os cabelos compridos e cheios de nós, eu percebi que não importando a aparência, era uma criança ali, e aquele olhar dele, mesmo triste, tinha alguma coisa, um fundo.
- Ouça moça, agradeço a gentileza da senhora por ter cuidado de mim quando me foi necessário, o que, por sinal, eu até já fiz. Sou uma criança, tenho meus nove anos, e você? Ao que me aparenta, deve ter os seus trinta anos, e deve achar que sabe muito mais que eu não é? E quem não acharia? Eu sou só um mendigo, um sujo menino de rua, mas me responda uma coisa, e se fosse você? Com a sua idade exata de agora, independente de eu ter acertado ou não, como você se sairia nas ruas? Todos os cálculos e equações, todas as fórmulas e todas as lições, do que adiantariam em um mundo como o meu? Você sabe do que você precisa para viver, em seu apartamento de solteira, a sua panificadora, essa é a sua vida, se você saísse daqui, se você vivesse nas ruas, do que adiantaria todo o seu conhecimento sobre pães e bolos? Você não teria dinheiro nem para comprar os ingredientes, e pior se formos pensar no forno, certo? Então, se você fosse todo dia a uma panificadora, exatamente, sempre no mesmo horário, e recebesse sempre a mesma resposta, o que você faria? Você desistiria? Ou você continuaria tentando? Você não saberia o que fazer, não adianta mais pedir esmola, o povo de hoje em dia, por incrível que pareça, pode andar de BMW mas estão sempre “quebradões”. As vezes conseguimos uns cinqüenta centavos, corremos até a mercearia mais próxima e compramos balas. Mas o pior de tudo é a noite, a noite em que você não vê nada, em que você não sabe para onde ir, olhe para mim, para onde você acha que eu vou? Não tenho casa, muito menos família, aprendi do pior jeito que super heróis não existem e que o natal não existe para mim. Mas, a noite, a noite encontramos tudo, desde prostitutas a ladrões. Mas, o pior, são quando se aproveitam de mim, o que você acha que acontece quando um tarado vê uma criança sozinha andando pelas ruas a noite? Agora, você deve reclamar da sua vida certo? Você gostaria que a sua panificadora ficasse famosa, e também gostaria de morar no Central Park, pois é, eu gostaria de viver a vida que você tem. Agora, por que você acha que eu venho aqui todos os dias pedir um pão e sou rejeitado? Eu não tenho escolha, quando entro aqui, mesmo que seja por alguns instantes, eu me sinto seguro, porque eu não estou lá – e aponta para fora – e quer saber por que eu peço um pão? Por que eu sei que daqui a alguns anos, eu não estarei mais pedindo, eu estarei com uma arma na mão e com um capuz na cabeça, o que você sabe sobre a realidade com os seus tantos anos? Agora me pergunte o que eu sei, e ai sim você vai se assustar.
    Ele se retirou, e então eu finalmente pude respirar normalmente novamente, estava em choque, quando me deparei, estava chorando, o porquê? Independente de tudo, ele estava certo. Isso quer dizer, que eu estava errada? Eu não sei de mais nada.
    Fui para casa, estava péssima, esperei até o outro dia, era noite, e você acha que eu consegui dormir sabendo que aquele menino estava nas ruas sozinho?
    Claro que não.
    No outro dia, esperei até a hora certa de ele entrar, e ele entrou.
- Você poderia me dar um pão?
    Não pensei mais em possibilidades, eu queria que ficasse a maior parte do tempo ao meu lado.
- Claro.
    Peguei um na cesta de pão e lhe dei. Ele pegou com os olhos em gula e logo tascou uma enorme mordida.
- Quando foi a última vez que comeu?
    Ele continuava olhando para o pão, mas não deixou de responder.
- Quando estava no hospital.
    Então, eu me lembrei dos dois pães que deixei para ele. Isso já fazia algum tempo.
- Qual é o seu nome?
    Ele deu uma última mordida no pão que foi rapidamente devorado e então me olhou e disse:
- Taylor.
    Taylor, esse era seu nome, depois de tanto tempo e eu só sei disso agora?
- Sou Samanta.
- Eu já sabia.
    Eu fiquei em dúvida, então me lembrei da placa da panificadora “Sam’s”, era o único nome que poderia se tirar deste apelido. Ele era mesmo mais esperto do que eu imaginava. E quem foi que disse que ele não poderia pensar muito?
- Obrigado.
    Virou-se e começou a se retirar, então eu me perguntei se seria capaz de dormir mais uma noite sabendo que ele esta ai pelas ruas sozinho.
- Não gostaria de passar a noite em casa?
    Sim, eu falei sem pensar, mas eu não agüento mais ver aquela cara triste.
- Quantas crianças de rua você já chamou para passar a noite em sua casa?
    Bingo! Ele havia me pegado.
- Nenhuma.
    Ele se virou novamente e saiu porta afora. Eu logo sai correndo atrás dele.
- Por favor, não chamo todas as crianças de rua para dormirem na minha casa, mas você é importante, você é sincero, e eu não teria ficado no hospital com você se não me importasse verdadeiramente.
    Ele olhou diretamente para mim e disse:
- Se importa? Há quanto tempo você vem me negando pão?
    Bingo de novo!
- Eu sei, e peço mil perdões, mas depois do que você disse...
- Não quero que tenha pena de mim.
    E saiu novamente.
    Eu o puxei pelo braço e tentei mais uma vez.
- Te darei uma família, uma casa, refeições diárias, tudo o que precisar, pães todos os dias.
    Ele arregalou o olho.
- É tentador, mas não posso aceitar.
- O que? Como assim?
    Ele olhou ao redor pensativo e então voltou os olhos para mim.
- Gostaria mesmo de me ajudar?
    Não pensei duas vezes.
- Claro.
- Então, sempre que eu lhe pedir um pão. Por favor, me dê.
- Tudo bem, mas...
- Não, não posso aceitar sua proposta. Assim como você tem uma vida bem sucedida e batalhou pra isso, eu também vou tentar.
- Mas eu posso te ajudar.
- Claro que pode, com um pão por dia.
- Mas...
- Não, por favor, uma vez ouvi dizer que Deus escreve certo por linhas tortas, não sei se estou em condições de acreditar nisso, mas por que não? Numa coisa eu acredito, eu acredito que se tentar eu posso conseguir. Eu posso ser uma linha torta agora, mas acredito que o meu futuro pode ser melhor, mas não contigo. Eu tenho que finalizar a minha história. E você tem que finalizar a sua.
    Deu-me um último abraço, agradeceu e saiu.
    A partir daquela noite, ele voltava todos os dias e nunca mais o neguei nada.
    E então, volto à pergunta de início para vocês, meus queridos e amáveis leitores que compartilharam comigo esta história que tanto me marcou em minha vida, o que você daria para o título desta história? Nada não é?

#GessycaToledoNetto

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